quarta-feira, 21 de março de 2012

Crítica de livro: A Princess of Mars (Uma Princesa de Marte)

Há exatamente um século, no mesmo ano que criou Tarzan, provavelmente seu personagem mais famoso, o prolífico e muito imaginativo escritor americano Edgar Rice Burroughs criou John Carter. Na verdade, Carter e Tarzan não são lá muito diferentes entre si. As duas estórias têm, como premissa básica, a noção de "um estranho em terra estranha", sendo que Tarzan é um humano criado por gorilas em meio à selva africana enquanto que John Carter é um humano transportado para Marte, tendo que lidar com seres estranhos.

O interessante é que, ao passo que Tarzan foi adaptado incontáveis vezes para televisão e cinema, John Carter permaneceu, esse tempo todo, preso às páginas dos livros. E isso apesar de ter amealhado, ao longo desses 100 anos de existência, uma legião de fãs muito fiéis. Por um lado, a qualidade interplanetária do livro que inaugurou a série baseada no personagem - Uma Princesa de Marte - talvez tenha sido a principal razão de pouquíssimo aproveitamento da estória. Por outro, porém, constatamos, historicamente, que personagens "interplanetários" como Flash Gordon foram explorados nas telonas e telinhas por diversas vezes, sem cerimônia. Não sei exato o que levou Uma Princesa de Marte a ficar parado, portanto.

De toda forma, esse livro é considerado como uma grande contribuição ao gênero da ficção científica, tendo influenciado diversos outros autores, como Ray Bradbury e Arthur C. Clarke. Aliás, o livro mesmo foi inspirado pelo trabalho de observação astronômica do italiano Giovanni Schaparelli, de 1877, que, pela primeira vez, identificou os famosos canais de marte que levaram à ideia ficcional que o planeta teria sido habitado.

Com isso na cabeça, Burroughs criou um universo riquíssimo em que um ex-soldado, na época da Guerra Civil americana, é misteriosamente transportado para Marte (Barsoom, na língua local) e lá entra em conflitos tanto com os tenebrosos e violentos - selvagens mesmo - marcianos verdes de 4 braços, como com os marcianos vermelhos, muito parecidos conosco. John Carter, em vista da gravidade de Marte, é mais forte do que o normal, podendo matar enormes inimigos com apenas um soco e, além disso, consegue pular alturas incríveis. Esses poderes aliados à sua paixão pela princesa marciana do título, Dejah Torris, o levam a liderar uma rebelião, já que o planeta (que está morrendo) vive em constante situação de guerra civil, com as cidades de Helium e Zodanga, dos marcianos vermelhos, se estapeando o tempo todo e os marcianos verdes selvagens também brigando entre si e, sempre que podem, também contra os vermelhos.

Apesar do heroísmo puro de Carter, suas ações são basicamente movidas por egoísmo. Ele quer a princesa a todo custo, nem que para isso seja necessário matar toda a população do planeta. Aliás, Carter não perdoa ninguém e, com a mesma facilidade que salva alguém, mata outras dezenas de pessoas sem nem tentar negociar um acordo antes. Por exemplo, ao saber que para ter a mão da princesa ele precisaria matar o príncipe de Zodanga, ele nem pestaneja e começa a bolar um plano para alcançar esse objetivo.

O mérito de A Princesa de Marte, porém, está na febril imaginação de Burroughs. Sua descrição dos marcianos, dos canais, dos aparelhos de sustentação da atmosfera, das naves, das cidades e dos monstros é uma beleza se considerarmos quando a obra foi escrita. Fica fácil ver as impressões digitais de Burroughs em diversas obras ao longo das décadas subsequentes até hoje em dia, sejam elas obras literárias ou audiovisuais. É como se o autor tivesse criado todos os clichês da ficção científica (o que não é algo muito longe da verdade).

Mas, devo confessar que a execução da imaginação de Burroughs deixa muito a desejar. Em outras palavras, o livro é muito mal escrito (pronto, falei), com explicações detalhadas em um momento e, em outros, um frase - ou só algumas palavras - para contar toda uma batalha, toda uma situação. Além disso, Burroughs vagarosamente constrói situações na primeira metade do livro que permitiriam a expansão em várias obras. No entanto, do nada, ele resolve fechar todas as pontas soltas de uma hora para outra, sem maiores cerimônias. Tudo bem, imagino que Burroughs não contava com o sucesso, que o levaria a escrever 10 continuações, mas daí a, por exemplo, inventar o tenebroso e forçadíssimo epílogo de Uma Princesa de Marte, que vem do nada e se resolve em questão de duas páginas da maneira mais idiota possível (e, ainda por cima, depondo contra seu próprio personagem, tão inteligente nas páginas precedentes e tão burro no final), há uma grande diferença. O livro teria se beneficiado de um bom editor, que pudesse extirpar algumas partes que simplesmente não adiantam a trama e só funcionam para forçar Burroughs a arrumar encerramentos completamente artificiais e que não fluem bem.

Eu ainda iria além, talvez, e diria que, mesmo com uma eventual edição profissional, o livro deixaria muito a desejar em qualidade. Quem sou eu para criticar Burroughs mas Uma Princesa de Marte (que li no original em inglês) é fraco demais em estruturas básicas, como desenvolvimento de personagens e suas respectivas interações e motivações. Todos são volúveis, mudam de ideia a toda hora e tramas paralelas são introduzidas - e mal desenvolvidas - a cada capítulo.

Sim, eu sei que Uma Princesa de Marte é um dos mais ilustres exemplos de pulp fiction, aquelas publicações baratas do final do século XIX até meados do século XX, com conteúdo duvidoso. Muitas ideias e personagens perenes no imaginário popular foram criados nessa época (John Carter é apenas um mas há também, por exemplo, Buck Rogers, Doc Savage, Flash Gordon, Zorro, O Sombra e por aí vai) e esses livros nada mais eram do que uma espécie de continuação do gênero teatral das chamadas well-made plays, peças que usavam personagens padrão, clichês mesmo, com finais extremamente previsíveis, em produção massificada. Mas, mesmo considerando isso tudo, Uma Princesa de Marte parece um repositório de brilhantes ideias soltas jogadas em um folha de papel e arranjadas de uma maneira minimamente razoável.

Mas, apesar de todas as minhas reclamações, uma coisa é certa: a ficção científica (e o gênero de fantasia como um todo) deve muito a esse livro mal-escrito. Isso ninguém pode tirar de Edgar Rice Burroughs e não há como não respeitar um autor desse naipe.

Nota: 5 de 10 (10 pelas ideias, 0 pela execução, média 5)

3 comentários:

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  2. Ritter, parabéns pela resenha. Embora eu não concorde com tudo (não achei livro tão mal construído assim, pois tentei me colocar à época), achei a mais inteligente que li. Eu li “Uma Princesa de Marte”, assim como sua continuação imediata “Os Deuses de Marte”, meio que como um adolescente da época em que o Titanic afundou (1912, hehehe). E curti. Certamente, e infelizmente, percebi também muito das falhas que vc citou, mas isso não me comprometeu, a meu ver, o romance. O meu inglês não é lá grande coisa, de modo que não pude ler o original, embora eu tenha há anos uma edição inglesa, dos anos 50, a obra. Li a tradução da Aleph, que possui alguns erros. Em contato com a editora, eles me agradeceram a correção e me presentearam com a continuação. E foi muito gostoso lê-lo, com final abrupto e tudo (tal qual seu antecessor) e um gancho e tanto para o final o próximo livro. Afinal, Burroughs precisava criar expectativa para poder vender e assim sustentar sua família! Confesso que passei meio batido em algumas passagens desnecessariamente muito detalhadas, em ambas as obras. Estava louco para chegar ao fim e ver o desfecho da trama, mas o que ficou é uma enorme vontade de saber o que acontece com o planeta Marte depois. Como era noite estrelada, peguei minha luneta e fiquei vendo Marte. Não vi nada de mais, mas deu vontade de brincar de Carl Sagan, que fechava os olhos e tentava ingenuamente se teletransportar para lá quando criança, para conhecer pessoalmente a Dejah Thoris. Mas ao imaginar um John Carter ciumento, desisti!
    Grande abraço!

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    1. Pois é, dos 3 livros primeiros e principais, prefiro Os Deuses de Marte. O 3º, se vocÊs ja leram é de tirar o fôlego mas chega a ser cansativo, mas é muito bom ver a que final levaram todos os personagens. Só esqueceram TOTALMENTE da Sola, que tinha uma história linda no primeiro livro.

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Pensem antes de escrever para escreverem algo com um mínimo de inteligência. Quando vocês escrevem idiotices, eu apenas me divirto e lembro de Mark Twain, que sabiamente disse "Devemos ser gratos aos idiotas. Sem eles, o resto de nós não seria bem sucedido."